Livro selecionado: "O Céu e o Inferno"
Capítulo VIII
Expiações Terrestres (continuação)
Instruções do Guia do Médium
Pobrezinho sofredor, definhado, ulceroso e disforme! Nesse asilo de misérias e lágrimas, quantos gemidos dados! E como era resignado... e como a sua alma lobrigava já então o termo dos sofrimentos, apesar da tenra idade! No além-túmulo pressentia a recompensa de tantos gemidos abafados, e esperava! E como orava também por aqueles que não tinham resignação no sofrimento, pelos que trocavam preces por blasfêmias!
Foi-lhe lenta a agonia, mas terrível não lhe foi a hora do trespasse; certamente os membros convulsos contorciam-se, oferecendo aos assistentes o espetáculo de um corpo disforme a revoltar-se contra o destino, nessa lei da carne que a todo o custo quer viver; mas, anjo bom lhe pairava por sobre o leito mortuário e lhe cicatrizava o coração. Depois esse anjo arrebatou nas asas brancas essa alma tão bela a escapar-se de tão horripilante corpo, e foram estas as palavras pronunciadas: "Glória a Vós, Senhor, meu Deus!" E a alma subiu ao Todo-Poderoso, feliz e exclamou: Eis-me aqui, Senhor; deste-me por missão exemplificar o sofrimento... terei suportado dignamente a provação?
Hoje, o Espírito da pobre criança sobressai, paira no Espaço, vai do fraco ao humilde, e a todos diz: — Esperança e coragem. Livre de todas as impurezas da matéria, ele aí está junto de vós a falar-vos, a dizer-vos não mais com essa voz fraca e lastimosa, porém agora firme: "Todos que me observaram, viram que a criança não murmurava; hauriram naquele exemplo a calma para os seus males e seus corações se tonificaram na suave confiança em Deus, que outro não era o fim da minha curta passagem pela Terra".
Santo Agostinho.
Szymel Slizgol
Este não passou de um pobre israelita de Vilna, falecido em maio de 1865. Durante 30 anos mendigou com uma salva nas mãos. Por toda a cidade era bem conhecida aquela voz que dizia: "Lembrai-vos dos pobres, das viúvas e dos órfãos!" Por essa longa peregrinação Slizgol juntara 90.000 rublos porém não guardava para si um só copeque. Aliviava e curava os enfermos; pagava o ensino de crianças pobres; distribuía aos necessitados a comida que lhe davam.
À noite, destinava-a ele ao preparo do rapé, que vendia a fim de prover às suas necessidades, e o que lhe sobrava era dos pobres. Foi sozinho no mundo e no entanto o seu enterro teve o acompanhamento de grande parte da população de Vilna, cujos armazéns cerraram as portas.
Sociedade de Paris, 15 de Junho de 1865
Evocação.
Excessivamente feliz, chegado, enfim, à plenitude do que mais ambicionava e bem caro paguei, aqui estou, entre vós, desde o cair da noite. Agradecido pelo interesse que vos desperta o Espírito do pobre mendigo, que, com satisfação, vai procurar responder às vossas perguntas.
P. Uma carta de Vilna nos deu conhecimento das particularidades mais notáveis da vossa existência e da simpatia que essas particularidades nos inspiram nasceu o desejo de nos comunicar convosco. Agradecemos a vossa presença e, uma vez que quereis responder-nos, principiaremos por vos assegurar que mui felizes seremos se, para nossa orientação, pudermos conhecer a vossa posição espiritual, bem como as causas que determinaram o gênero de vida que tiveste na última encarnação.
R. Em primeiro lugar concedei ao meu Espírito, cônscio da sua verdadeira posição, o favor de vos transmitir a sua opinião, com respeito a um pensamento que vos ocorreu quanto à minha personalidade. E reclamo previamente os vossos conselhos, para o caso de ser falsa essa minha opinião.
Parece-vos singular que as manifestações públicas tomassem tanto vulto, para homenagear a memória do homem insignificante que soube por seu Espírito caridoso atrair essa simpatia. Não me refiro a vós, caro mestre, nem a ti, prezado médium, nem a vós outros verdadeiros e sinceros espíritas; falo, sim, para as pessoas indiferentes à crença, pois, nisso, nada houve de extraordinário. A pressão moral exercida pela prática do bem, sobre a Humanidade, é tamanha que, por mais materializada que esta seja, se inclina sempre, venera o bem, a despeito da sua tendência para o mal.
Agora, as perguntas que, da vossa parte, não são ditadas pela curiosidade, mas simplesmente formuladas no intuito de ampliar o ensino. Uma vez que disponho de liberdade, vou, portanto, dizer-vos, o mais sucintamente possível, quais as causas determinadoras da minha última existência.
Há muitos séculos vivia eu com o título de rei, ou, pelo menos de príncipe soberano. Dentro da esfera do meu poder relativamente limitado, em confronto com os atuais Estados, era eu, no entanto, absoluto senhor dos meus vassalos, como dos seus destinos, e governava-os tiranicamente, ou antes — digamos o próprio termo — como algoz.
Dotado de caráter impetuoso, violento, além de avaro e sensual, podeis avaliar qual deveria ter sido o destino dos pobres seres sujeitos ao meu domínio. Além de abusar do poder para oprimir o fraco, eu subordinava empregos, trabalhos e dores ao serviço das próprias paixões. Assim é que impunha uma dízima ao produto da mendicidade, e ninguém poderia acumular sem que eu antecipadamente lhe não tomasse uma cota avultada, dessas sobras que a piedade humana deixava resvalar para as sacolas da miséria. E mais ainda: a fim de que não decrescesse o número de mendigos entre os meus vassalos, proibia aos infelizes darem aos amigos, parentes e fâmulos necessitados a parte insignificante do que ainda lhes restava.
Em uma palavra, fui tudo quanto se pode imaginar de mais cruel, em relação ao sofrimento e à miséria alheia. No meio de sofrimentos horrorosos, acabei por perder isso a que chamais — vida, tanto que minha morte era apontada como exemplo aterrador a quantos como eu, posto que em menor escala, tinham o mesmo modo de pensar.
Como Espírito, permaneci na erraticidade durante tres séculos e meio, e, quando ao fim desse tempo compreendi que a razão de ser da reencarnação era inteiramente outra que não a seguida por meus grosseiros sentidos, obtive à força de preces, de resignação e de pesares a permissão de suportar materialmente os mesmos sofrimentos que infligira, e mais profundamente sensíveis que aqueles por mim ocasionados.
Obtida a permissão, Deus concedeu que por meu livre-arbítrio aumentassem os sofrimentos físicos e morais. Graças à assistência dos bons Espíritos, persisti na prática do bem, e sou-lhes agradecido por me terem impedido de sucumbir sob o fardo que tomara aos ombros. Finalmente preenchi uma existência de abnegação e caridade, que por si resgatou as faltas de outra, cruel e injusta. Nascido de pais pobres e cedo orfanado, aprendi a ganhar o pão numa idade em que muitos consideram incapaz o raciocínio.
Vivi sozinho, sem amor, sem afeições, e desde o princípio suportei as brutalidades que para com outros havia exercido.
Dizem que as quantias por mim esmoladas foram todas destinadas ao alívio dos meus semelhantes: é um fato inconcusso, ao qual, sem orgulho nem ênfase, devo acrescentar que muitíssimas vezes, com sacrifício de privações relativamente imperiosas, aumentava o benefício que me permitiam fazer a caridade pública. Desencarnei calmamente, confiando no valor da minha reparação, e sou premiado muito mais do que poderiam ter cogitado as minhas secretas aspirações. Hoje sou feliz, felicíssimo, podendo afirmar-vos que todos quantos se elevam serão humilhados, como elevados serão todos quantos se humilharem.
P. Tende a bondade de dizer-nos em que consistiu a vossa expiação no mundo espiritual e quanto tempo durou, a contar da vossa morte até o momento da atenuação por efeito do arrependimento e das boas resoluções. Dizei-nos também o que foi que provocou a mudança das vossas idéias no estado espiritual.
R. Essa pergunta desperta-me muitas recordações dolorosas! Quanto sofri eu... Mas não, que não me lamento: apenas recordo!... Quereis saber a natureza da minha expiação? Pois ei-la na sua terrível hediondez.
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