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segunda-feira, 26 de outubro de 2015
INCÊNDIO NA SERRARIA
INCÊNDIO NA SERRARIA
I
O grupo de senhoras estava em prece.
Chamados a ouvi-las, nós, os desencarnados, tínhamos o coração enternecido.
Desejavam construir uma escola. E mentalizavam no doce requerimento o modesto edifício,
limpo e alvo, que ofertariam aos pequeninos.
- Senhor - dizia a mais experiente das quatro -, Senhor, inspirai-nos e protegei-nos.
Agradecemos as dádivas que já recebemos em Vosso nome. O pedaço de terra, a pedra e a
cal... Agora, Senhor, precisamos de madeira para dar início... Confiadas em Vosso amor,
visitaremos a fábrica de móveis... Rogaremos auxílio, contando com Vossa bênção!
Em seguida, levantaram-se para sair. E, comovidos, junto delas, pusemo-nos igualmente em
marcha.
II
O gerente da serraria-oficina, importante empresa da grande cidade, recebeu a comissão
cortesmente.
Contudo, o Dr. Alberto - era ele engenheiro hábil -, ao ouvir a sucinta exposição, esfriou,
desapontado.
Mas, mesmo assim, a conversação se fez viva.
- Não temos interesse algum em concessão semelhante - disse.
- Doutor, mas é uma escola destinada às crianças menos felizes - falou D. Rute, a maior
responsável.
- As portas serão abertas em nome de Deus - falou D. Constância.
- Contamos com o senhor - acentuou Dona Ester.
- Deus recompensará o que possa fazer - aduziu D. Amália.
- E que temos a ver com Deus? - falou ele, mordaz. - A educação é obra para governos. Não
será lícito imiscuir o Criador em negócios que não lhe dizem respeito. Digo isso em
consideração às senhoras, porque, de mim mesmo, sou materialista confesso. Ateu. Ateu
puro.
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D. Rute sorriu, delicada, ma não se deu por vencida. E aclarou:
- Decerto que esperamos do governo que nos dirige providências mais amplas a favor dos
meninos. Entretanto, até que isso aconteça, não será compreensível fazer algo de nossa
parte? O ensino será totalmente alheio ao ensino religioso.
- Mas, por que envolver Deus nesta história? - resmungou o engenheiro, positivamente
sarcástico.
- Por que não? - ponderou D. Rute, paciente. - Respeitamos o seu ponto de vista, o seu
modo de pensar ... Mas cremos na força inteligente da vida. Admitimos a eterna bondade
que orienta os sucessos do mundo. Sabedoria e amor que chegam de Deus. O senhor
comanda uma fábrica. Conta dezenas de empregados. Dispõe de muitas máquinas.
Entretanto, doutor, acreditamos que toda a matéria-prima, como sejam as árvores cortadas,
os instrumentos em uso, o equilíbrio dos servidores e até mesmo a sua própria saúde são
doações de Deus, que a todos nos sustenta.
- Quem é o dono real de tudo, senão Deus? - falou D. Ester, com brandura e
espontaneidade.
O Dr. Alberto mostrou-se mais irônico. Referiu-se à Natureza. Exibiu mapas e apontamentos
sobre botânica. Comentou as vitórias da contabilidade, da técnica, da fiscalização, da
higiene...
Por mais de uma hora falou e falou sobre os novos progressos da Humanidade. E acabou
notificando que não daria peça alguma, nem mesmo um centavo.
As senhoras, apesar de sorridentes, levantaram-se acabrunhadas.
Tudo em vão.
Começaram as despedidas corretas, quando o inesperado aconteceu.
III
- Doutor Alberto! Doutor Alberto! - gritou um operário, varando a porta do gabinete. -
Depressa! Venha depressa! O fogo está devorando a seção de compensados!
Alarido interior. Campainhas vibrando. Corre-corre. Brados por socorro multiplicam-se
angustiantes.
O engeheiro movimenta-se, espavorido.
As senhoras instintivamente lhe seguiram os passos. E nós também.
O incêndio nascera de violento curto-circuito.
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Dr. Alberto, muito pálido, ordena e coopera. Há deficiência de pessoal. As senhoras, porém,
corajosamente, tomam a dianteira do trabalho salvacionista, como se lhe fossem subalternas
de muito tempo.
Empunham mangueiras. Deslocam móveis. Transferem tábuas pesadas. Combatem o
fogaréu. E pulam. E sofrem queimaduras ligeiras. Estafam-se. E vencem. Finda meia hora de
intensa luta, as chamas se extinguem. Ainda assim, esclarece o chefe de obras que
duzentos mil cruzeiros de madeira compensada deviam estar perdidos. A casa não estava
segurada contra incêndio.
O Dr. Alberto, todavia, agora calmo, aproxima-se das damas, quatro heroína aos seus olhos
e, cumprimentando a diretora da comissão, disse, gentil:
- D. Rute, penso que Deus ganhou a questão de sua escola. Mudei de idéia. Mande buscar
amanhã toda a madeira de que necessite. E mais o que precisar.
E, bem-humorado, acrescentou:
- Depois conversaremos sobre Deus, como dono desta oficina...
As senhoras, chamuscadas, com as vestes sujas e rasgadas, sorriram e retiraram-se.
Depois de dois meses, escola singela e branca recebia quarenta meninos. Doutor Alberto,
presente à inauguração, contou a história do incêndio, e um garoto, em seguida, fez pequeno
agradecimento, terminando com a bela exclamação:
- Que Deus nos abençoe!
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