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quinta-feira, 1 de setembro de 2016

OJE ...O LOURINHO BAIANO


O Mensageiro  -  Revista Espírita-Cristã do Terceiro Milênio 
Título :Oje -  O Lourinho Baiano
Autor:Nancy Puhlmann Di Girolamo
Data:01/06/2007
Fonte:Livro: As Aves Feridas na Terra Voam
MENSAGENS
  
Seu nome era ôje, pronunciado em paroxítono.
Não sabemos se alguém lhe deu esse nome, ou se foi ele mesmo que o escolheu do fundo do seu pensamento preso.
Veio do Nordeste em “pau de arara”.
Entre duas dezenas de gente ele foi incluído, não se sabe por quem.
Magrinho e calado, tão mal vestido como os outros meninos de sua idade – teria 6 ou 9 anos? – passou despercebido.
No caminho lhe deram pedaços de pão amanhecido. Cada um dos adultos, a maioria homens, pensava que ele era do outro.
Foi assim que chegou a São Paulo. E só então, na divisão das pessoas, se deu conta de que ele não estava com ninguém, não era de nenhum, e nem sequer alguém o conhecia.
Uma “policia feminina” tentou interrogá-lo, sem resultado. Levou-o a um assistente social, a um comissário de menores, a...
Não adiantou. Ele não dizia nada. Olhava o ar como se estivesse vazio por fora e por dentro.
Não fixava as pessoas. Tudo lhe parecia indiferente, até o alimento que mastigava como se fosse um “robô” e isso após longos intervalos de jejum.
Só reagia – e negativamente – quando era tocado, como se sua pele quisesse ficar só para ele, e se sentisse ofendida ou maculada pelos contatos.
Foi assim que o conhecemos quando foi levado para o Centro de Reabilitação onde trabalhamos.
Embora de procedência baiana (depois de lavado e escovado) era loiro, lembrando os invasores holandeses do Brasil nascente.
Perguntamos: - Qual o seu nome? Sem resposta.
Tentamos chamá-lo: João? Pedro? Antônio? Nada.
Cortamos, com grande dificuldade, seus cabelos loiros embaraçados. Ficou de “franjinha” e viu-se que era bonito.
- Será mais bonito ainda quando conseguirmos que seu olhar marrom deixe de ficar curto e vago. Foi o que pensamos.
As pessoas, principalmente as crianças, são difíceis de serem compreendidas, mas é pelo olhar que podemos saber – não “como são”, mas “como estão” naquele momento.
O excepcional, ou os que agem como tal por motivos vários, apresentam seu grau de “status” interior pela expressividade do olhar.
No Evangelho de Mateus 7:22 é dito o seguinte: “A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz”.
Depois de bem examinado pela nossa equipe de reabilitação, o prontuário deste menino se resumiu em observações exteriores. Ele não se abriu para ninguém.
Um resumo em linguagem popular seria este: Não era surdo, nem mudo, nem cego, mas estava trancado em si mesmo.
Houve um diagnóstico até complicado, e um prognóstico “reservado”, o que é sempre um desafio.
No dia seguinte ao de sua chegada, foi colocado no programa de Desenvolvimento Integral de Possibilidades, que é, em suma, um ambiente de oportunidades e motivações.
Fisioterapeuta, Psicólogo, Fonoaudiólogo, Terapeuta Ocupacional, na conseguiram. Na sala de socioterapia, cheia de miniaturas ligadas à vida social, nada o interessou.
Entretanto, uma tarde, quinze dias após sua chegada, estando no escritório, percebemos que o loirinho baiano passava pelo corredor no seu andar vago como folha ao vento.
E como se o vento atendesse a uma predestinação, o menino entrou na nossa sala e parou em nossa frente.
De repente o telefone tocou.
Íamos atender quando estacamos surpreendidos. O loirinho estremecera ao som do telefone. Tivemos a impressão subjetiva de que ele agia como quem esperasse um telefonema, uma chamada exatamente para ele.
Tocou de novo. Agora o menino olhava fixa e diretamente o aparelho preto.
Terceiro sinal.
Pegamos o fone, e o colocamos em posição de atendimento sobre o ouvido do garoto.
Com as duas mãos, suas próprias mãos, ele segurou fortemente o telefone e, como se respondesse a alguém, falou sua primeira e única palavra, num som que saiu como que do fundo de um túnel: Ôje.
Pegamos aquele fiozinho de abertura solto de dentro para fora, e não o largamos mais.
Repetimos muitas vezes: Ôje! Ôje! , tentando uma interação olho no olho e, naquele mesmo dia, isso começou a ser conseguido.
O baiano loirinho passou a responder à palavra mágica e, desde então, todos ficaram sabendo que o seu nome era Ôje.
O estranho é que ele mesmo nunca mais falou durante os dois anos em que esteve na Terra conosco. Mas sempre respondeu ao “Ôje” como se esse fosse o seu nome.
- Ôje, venha almoçar.
- Ôje, é hora de ginástica.
- Ôje, vamos passear.
Realmente ele ficou lindo quando seu olhar marrom conseguiu acompanhar o movimento dos objetos e mergulhar nos olhos das outras pessoas.
Desde que teve um nome, aprendeu muitas coisas. Aceitou o manuseio, e manifestou a alegria pelo sorriso. Chegou a bater palmas, e a participar de jogos junto com outras crianças.
Executou exercícios de forma ativa, o que não pensávamos lhe ser possível.
Aprendeu a receber bem os abraços, e depois começou a retribuí-los.
Ficou forte e corado. Parecia feliz, mas quando estava em seu melhor momento de saúde e receptividade, ficou doente e, em três dias, saiu do corpo, regressando à pátria dos espíritos.
Nos últimos segundos de vida corporal, na respiração profunda de despedida, tentamos ouvir algum som, mas ele nada disse. Abriu bem os olhos numa expressão luminosa, e depois, lentamente, cerrou as pálpebras.
Nós é que ficamos falando: - Bóia Viagem, Ôje, Boa Viagem!
*
Relembrando essa pequena história de vida, ocorre-nos associar a sua palavra mágica à conotação daquela outra palavra que, como som, é a mesma: Hoje.
Vem ao nosso pensamento, dentro da saudade do loirinho baiano, a importância da hora presente, do minuto de vivência, da oportunidade do “agora”, a significação que pode ter a mensagem das coisas, tal como o som do telefone para o garoto que tirou do fundo de seu pensamento a sua identificação.
Talvez tivesse havido apenas uma tentativa de repetir a expressão baiana “ôche” ou o inicio de uma palavra inacabada, ou simplesmente um som sem sentido algum.
O importante é que desse som nasceu o laço pessoal, afetivo, individual, que permitiu marcar a sua passagem consciente por mais uma experiência de vida na Terra.
Excepcionais como o pequeno Ôje, com incalculável esforço, chegam a perfurar uma brecha em meio à escuridão de um caminho fechado, para canalizar uma preciosa gota de comunicação, enquanto nós, os libertos para a interpenetração em tudo o que Deus criou para o mútuo burilamento, usamos e abusamos da palavra e da ação livres para, muitas vezes, confundir coisas, e desperdiçar tempo.
Cada vez mais certos de que temos muito a aprender com os “excepcionais”, agradecemos ao loirinho baiano por nos ter dito o seu nome que podemos extrapolar para uma verdade filosófica de grande alcance pragmático: a de que nosso nome verdadeiro, no dinamismo das mudanças, está sempre no “Hoje”, no que fazemos em cada segundo de vida, porque só o “Hoje” realmente nos pertence para nele construirmos o que quisermos; só ele nos identifica, e essa identidade é grande ou pequena, boa ou má, na medida em que nele nos movemos e nele nos transformamos.

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